segunda-feira, 24 de dezembro de 2012

CASU 6 - Outono 2012

"O Risco do Arquitecto é um título propositadamente ambíguo, com dois sentidos: de um lado, revelar e dar a conhecer o enquadramento profissional do arquitecto, o modo como “risca”, o desígnio e os propósitos; e do outro, salientar para o “risco” que corre aquele desígnio, enquanto destino e propósito de futuro. A partir da génese da profissão e das suas organizações, o autor discorre sobre a formação em arquitectura e o exercício profissional. Como última profissão humanista e operativa, a Arquitectura sofreu no passado próximo uma modificação profunda, social e científica: actualmente, é exercida por mais de 21 000 arquitectos. A política profissional tem defendido a manutenção do território de actuação em vez de promover a sua ampliação. A uma preocupação legítima da falta de exclusividade na responsabilidade, quanto ao projecto de arquitectura, não se tem associado a preocupação de alargar o território de actividade, de criar a diversidade que contribui para a garantia da autonomia profissional."
O final de ano que agora termina ficou-nos marcado pela perda do Vasco Massapina, colega da Direcção da Associação dos Urbanistas Portugueses (AUP). Autor deste livro, do qual citámos o parágrafo anterior, com ele pude confirmar as principais inquietações da nossa profissão. O Vasco era de uma geração mais experiente, "batido" em tudo o que diz respeito à arquitectura e ao urbanismo: na prática, na teoria, na docência, na defesa do património, no conselho superior de obras públicas, no seu atelier "cidade aberta", nas associações profissionais... Mas partilhava contudo as minhas jovens intuições sobre estas disciplinas, na altura bem menos consolidadas, em particular as suas diferenças conceptuais e metodológicas, entre a arquitectura e o urbanismo, e quanto o arquitecto de "formação base" poderia ganhar em alargar a sua esfera de actividades. Isso sempre me deixou tranquilo, que o que pensava não era novo, havia quem o defendesse com maior experiência de vida, já há bastantes anos. O tempo dá-nos razão - fica certamente essa satisfação! No âmbito da AUP, em breve lhe faremos a devida homenagem, a uma pessoa que marcou pessoalmente cada um que teve a alegria de o conhecer.
Em 2012, conseguimos acertar o passo com a edição destes nano-artigos: em vez de somente 8 (em 2011), publicámos 16 CASU's, os tais 4 em cada número, acrescidos dos respectivos editoriais, por época do ano. Neste Outono com uma recolha de coisas que escrevemos também há bastantes anos. Um texto para uma obra do Arqt.º Sandro Lopes em Caminha, um artigo sobre o ensino do urbanismo (ambos de 2005), o excerto de uma comunicação a uma conferência (2003) e uma "carta aberta ao jovem arquitecto" (2001). Passada mais de uma década, por curiosidade, o André de ontem pode ser hoje o Director dessa mesma revista (JA), ou o aluno que tive o ano passado em Coimbra, ou qualquer outro jovem que se forme em Arquitectura nos próximos anos. Boas leituras e um excelente 2013.



domingo, 23 de dezembro de 2012

6.1 - Sem Preconceitos *


Fui habituado desde pequeno a olhar as povoações contínuas do Minho Litoral como lugares de passagem até chegar à Galiza, onde me esperavam 3 meses de imenso Verão. O percurso fazia-se durante todo o dia, por vezes muito lento devido às paragens próprias da época, em especial na EN 13, à passagem na Póvoa, em Ofir, Esposende, Viana, etc. Ansioso por chegar, era então que, já em Caminha, vislumbrava o encontro da foz do Minho com o mar e o Monte de Santa Tecla do outro lado, a anunciar que o nosso merecido descanso se aproximava.
Anos depois, acabei por conhecer um pouco dessa costa litoral, que tinha a sua própria história de férias em Moledo, onde alguns dos professores da “escola do Porto” haviam construído diferentes residências, algumas das quais tive a ocasião de visitar e através delas aprender também uma boa parte do que é o ofício da arquitectura, como os problemas de escala, dos usos e da construção, tão importantes na cultura arquitectónica desta região. A influência que essas obras tiveram na experiência profissional do Arq.º Sandro Lopes é ainda visível, mas o projecto desta habitação resulta também da sua prática em anteriores programas de âmbito público e de um constante diálogo com o proprietário, sempre indispensável para a consolidação teórica de uma obra desta natureza.
A “casa Fernando Martins” localiza-se já na dobra para o que resta da ruralidade de Caminha, virada a Norte para a foz do rio Coura. A escolha do local de implantação apresenta em resumo o valor da obra, que se “afasta” do acesso automóvel e aumenta a sua presença ao situar-se no ponto mais alto do terreno. Também por isso se distancía de preconceitos que poderiam complicar a sua leitura, como o imaginário minimal mais redutor ou as referências explícitas à tectónica local.
O projecto remete assim de maneira directa para as formas clássicas das obras de Frank Lloyd Wright, sem maior inquietude do que integrar todas as condicionantes na procura da melhor solução. Neste sentido comprova-se novamente a “lição venturiana”, que junta alegremente os problemas conceptuais e explora a partir deles as dificuldades com o que projecto se vai deparando. É o caso por exemplo das aberturas necessárias a Norte, de onde se obtém a melhor vista para o exterior, que se resolve através de uma agradável sequência de vãos, ao juntar a madeira das varandas salientes das salas com o ritmo das janelas dos quartos, por sua vez alinhadas com a superfície branca da parede que serve de transição para o remate com a cobertura.
No piso inferior, a parede corrida revestida a tijolo convida a entrar por debaixo desse grande balcão exterior e cobre a área técnica da casa, enquanto que do lado Sul, mais escondido pela inclinação do terreno, se concentram a cozinha, os escritórios e o corredor de acesso aos quartos, dando para um pequeno pátio. A cobertura em gravilha interrompe-se então para iluminar superiormente o hall e a escada de acesso, de forma a completar a luminosidade natural da área central da casa.
Num tempo estimulado pelo constante elogio do novo e das estranhas imagens da vanguarda arquitectónica, é no mínimo saudável observar esta “simples homenagem” à memória da “linguagem wrightiana”, apresentada sem preconceitos, afinal na melhor tradição do que sempre foi a arquitectura, o que revela uma maturidade pouco comum na sua geração, que só nos parece possível através de uma reflexão permanente sobre o desenho e os conteúdos e materiais preexistentes.


* artigo publicado na revista Arquitectura e Vida, nº 59, 2005.

segunda-feira, 17 de dezembro de 2012

6.2 - Da Escola para a actividade profissional (carta aberta ao recém licenciado)*

Caro André,

Serás tratado de jovem arquitecto, tal como eu, ainda por muitos anos, provavelmente até chegarmos aos 40. É uma designação com a qual concordo e me sinto bem, pois a prática da arquitectura, no sentido clássico do termo, e as obras de maior fôlego, exigem ambas uma experiência da vida que só o tempo nos poderá oferecer. Este “estatuto” de jovem arquitecto é assim, na minha perspectiva, uma condição preciosa que não devemos desperdiçar. Podemos assumir desde já a responsabilidade de exercer a nossa “profissão”, mas sabemos igualmente que não estamos ainda suficientemente preparados para a exercer em plenitude, tal como a arquitectura nos foi ensinada, actividade para qual queremos dar obviamente a nossa melhor contribuição. Por isso não avances com maior rapidez do que a necessária, para ti, e aproveita se possível todos estes anos para desenvolver um espírito crítico sobre a arquitectura, tanto no próprio seio do projecto, como nas suas manifestações junto da sociedade que vivemos.
Com efeito, os licenciados em arquitectura estão aptos a desenvolver outras actividades para além das que habitualmente exercem. Essa aptidão advém, principalmente, de dois factores. Por um lado, da nossa ampla percepção das escalas onde o homem se movimenta, do desenho construtivo ao planeamento urbano, e por outro, do nosso raciocínio de síntese, o qual integra, como prova o acto projectual, informações de áreas tão diferenciadas como a geografia, a engenharia, a história ou a economia. Emerge portanto a necessidade de tomarmos consciência que ser arquitecto, hoje em Portugal, pode significar muito mais do que ser o profissional que realiza projectos de arquitectura. E é aqui, sem dúvida, onde se colocam os problemas do ensino e da sua adaptação à realidade laboral existente.
Mesmo considerando um alargamento progressivo das áreas de actividade profissional, onde os arquitectos poderão intervir, parece-me que há outras formas de oferecer unidade a um curso de arquitectura sem ser pelo esmagamento dos conhecimentos parciais, em favor da acumulação de tempos na disciplina de Projecto. Isto porque também não é desejável a especialização ao nível da licenciatura (até pelas recentes orientações comunitárias) e muito menos existirem arquitectos da construção, da informática ou do planeamento. Mantém portanto a confiança no teu curso de arquitectura de espectro generalista e então, só depois, um espírito crítico e as oportunidades poderão fazer a diferença. Descobre o gosto pela investigação, apostando na diversidade, sem preconceitos ou juízos de valor. Encontra novos horizontes profissionais e assim darás uma contribuição inestimável para melhorar o ensino da arquitectura.
Os meus melhores cumprimentos,
Rui Florentino


* excerto de uma "carta do leitor", publicada no número 202 do Jornal Arquitectos da Ordem dos Arquitectos (2001).

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

6.3 - Ensinar Urbanismo ou "baralhar e voltar a dar"? *

Num livro introdutório, a Professora Inés Sánchez de Madariaga explica como a história do urbanismo, enquanto disciplina, se poderá fundamentar em 3 grandes tradições, relacionadas com diferentes aproximações epistemológicas aos factos urbanos: uma aproximação estética e artística, que relaciona a visão clássica da arte urbana renascentista e barroca com a morfologia da cidade e o projecto urbano actual (numa lógica estético-expressiva); uma aproximação técnica e racionalista, segundo o pré-urbanismo científico, que se desenvolve no séc. XX através dos movimentos modernos, do funcionalismo e da sustentabilidade ambiental (numa lógica técnico-dedutiva); e uma aproximação ética e social, que considera o urbanismo como um meio para a reforma social, desde a utopia à filosofia política, passando pela institucionalização do planeamento municipal até às experiências actuais de participação e de concertação social (numa lógica ético-normativa).
Com base nesta leitura, parece-nos aceitável defender que daqui decorrem as três principais dimensões do urbanismo, que servem de base à sua área de conhecimento específica e se mantêm presentes nos nossos dias: uma primeira dimensão artística, uma segunda dimensão técnica e uma terceira dimensão social. Mas é também por esta dificuldade em se  conciliar numa mesma estrutura universitária estes diferentes campos do saber que o licenciado dificilmente sairá com aptidões necessárias para a prática do urbanismo (e Urbanista como tal), ao fim de um primeiro ciclo de 4 ou 5 anos. Temos pois a sensação de que em Portugal, no ensino do urbanismo, corremos o risco de nos estarmos frequentemente a repetir, a “baralhar e a voltar a dar” os mesmos conhecimentos, seja em graduações ou em pós-graduações, em vez de se pensar num percurso sequencial de formação, que culminará sempre com a prática do planeamento.
Neste sentido, é importante reler as orientações para os conteúdos na formação dos Urbanistas que o Royal Town Planning Institute tem divulgado. Com base na definição da disciplina que o Conselho Europeu de Urbanistas estabeleceu, o Instituto recomenda às escolas de urbanismo diversos elementos de suporte à estrutura curricular, subdivididos em dois tipos de conhecimentos: os "Substantivos" e as Habilitações Práticas.
Este resumo é útil para nos recordarmos da complexidade inerente ao ensino do urbanismo e poderia encorajar as nossas Faculdades para um debate, ainda que inicialmente académico, sobre a formação que estamos a oferecer neste momento em urbanismo, planeamento e ordenamento do território, nas diferentes escolas (de Arquitectura, Engenharia, Geografia, Sociologia, Economia, etc.). Parece-nos que sem o esforço complementar das instituições de ensino seguiremos longe de atingir o nível profissional de outros países europeus e mantemos o risco de continuar a “baralhar e a voltar a dar” os mesmos conhecimentos, em diferentes graus, para alunos com diversos níveis de formação.


* por Rui Florentino. Excerto do artigo publicado na revista Urbanismo, nº 20 (2005), da AUP.