quarta-feira, 1 de agosto de 2018

100 - O "interior de Portugal" *

por Luís Cabral **

Nos últimos anos, e em particular nas últimas semanas, muito se tem falado sobre o “desaparecimento” do interior. Em 2016, o Governo criou o PNCT [Programa Nacional para a Coesão Territorial] com o objectivo de contrariar “a tendência de desertificação dos últimos anos”. Em Maio, o Movimento pelo Interior (MPI) publicou o seu relatório final, com diagnóstico e soluções semelhantes.
Indo directamente à ideia central deste artigo: o diagnóstico do Governo e do MPI está equivocado; e as soluções propostas são, no melhor dos casos, ineficazes.
O MPI recorda que “entre 1960 e 2016 a população residente no litoral aumentou em 52,08%, enquanto no interior diminuiu em 37,48%”; e acrescenta que “não há país que se possa desenvolver na base de tão gritantes desigualdades”. A premissa é incontestável: contra factos não há argumentos; mas a ideia de que não há país que se possa desenvolver com base na concentração populacional não só é conceptualmente vazia como repetidamente falsificada pela evidência empírica.
Bem sei que a questão ‘litoral vs. interior’ não é o mesmo que desenvolvimento urbano versus desenvolvimento rural. No entanto, lendo o relatório do MPI, vejo que as preocupações com o crescimento do litoral correspondem em grande parte aos custos do desenvolvimento urbano. Para essas pessoas e para os que temem a concentração populacional, aconselho a leitura de Glaezer, Romer, Krugman e outros autores sobre o fenómeno da urbanização: não só não é um perigo para a humanidade como é, em grande medida, a solução para o problema do desenvolvimento económico e social.
Para os que se preocupam — com razão — com os problemas ambientais, acrescento também que a melhor forma de proteger o planeta é concentrar a população: as emissões de CO2, o consumo de energia, a poluição per capita, etc. são muito menores nos grandes agregados urbanos do que nas pequenas cidades e na província.
Para um economista, a intervenção governamental — nomeadamente a discriminação favorável a certas regiões — resulta de uma reconhecida falha de mercado. Uma possível falha de mercado é a informação incompleta. “O congestionamento do litoral”, lê-se no relatório do MPI, terá como consequência a “deterioração da qualidade de vida da população aí residente”. Uma forma de ler este diagnóstico é: as pessoas não sabem o que é bom para elas, pelo que o Governo ‘iluminado’ deve dar-lhes incentivos para se mudarem para o interior, o que é melhor para elas, mesmo que elas não o saibam.
Uma segunda falha de mercado corresponde ao que os economistas chamam externalidades: quanto o sr. X se muda do interior para o litoral, ele ignora tanto os custos que impõe às outras pessoas no interior (perdem um dos poucos vizinhos que ainda têm) como os custos que impõe às outras pessoas no litoral (mais um a congestionar uma região já cheia de gente). Este argumento tem duas respostas. Primeiro, não nos podemos esquecer dos enormes benefícios que cada pessoa traz para o aglomerado urbano. Isto não é apenas um argumento teórico: estudo após estudo confirma que as sinergias da aglomeração urbana são enormes.
Segundo, se de facto existem custos de congestionamento, então a melhor forma de os corrigir é criar impostos — chamados impostos de Pigou — que contrariem cirurgicamente esse custo. Por exemplo, se um habitante adicional em Lisboa cria custos de congestionamento automóvel, então que se crie um preço de trânsito na cidade (ou nas partes da cidade mais relevantes pare este efeito).
Em resumo, a ideia de favorecer o interior, na forma proposta tanto pelo Governo como pelo MPI, carece de racionalidade económica.
A atitude dos interioristas é particularmente equivocada no que respeita ao ensino superior. Em Maio, o Governo confirmou a intenção de cortar as vagas nas universidades de Lisboa e do Porto, uma tentativa de enviar mais alunos para as universidades do interior. Isto é um erro enorme. Os alunos, o ensino superior, o país têm mais a perder do que a ganhar com este tipo de políticas “iluminadas”.
Peço desculpa se tudo isto parece muito negativo. Não tenho dúvidas de que as propostas de coesão territorial do Governo e do MPI são muito bem intencionadas (escrevo isto sem ironia). A sociedade do século XXI sofre de uma série de “estruturas de desigualdade” que têm de ser enfrentadas pelas políticas públicas; mas é importante ser claro sobre o que “desigualdade” significa. Em sentido estrito, a concentração populacional é uma forma de desigualdade: a densidade no ponto A é superior à densidade no ponto B. No entanto, falar de “graves desigualdades em termos de ocupação territorial” (MPI) cria mais confusão do que clareza no debate sobre o problema da justiça social. Pôr este tipo de “desigualdade” no mesmo pé que as desigualdades mais prementes (rendimento, riqueza, educação) é um erro conceptual perigoso.


* Artigo publicado no suplemento Economia do jornal Expresso do dia 21 de Julho de 2018.
** Professor na Universidade de Nova Iorque e na AESE.


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