O
debate público iniciado no final de 2024 em torno da erradamente designada Lei
dos Solos, que inclusive contribuiu politicamente para precipitar a dissolução
da Assembleia da República, é um exemplo de como frequentemente perdemos oportunidades
para mudar as práticas da administração, neste caso do urbanismo e da gestão do
território. Agora que a alteração ao diploma, corretamente chamado de Regime
Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), promulgado pelo
Presidente da República após as votações do Parlamento nas últimas sessões da
legislatura, está em vigor e estabilizado, é tempo de fazer um balanço e delinear
opções para o próximo governo.
Trata-se
de um processo legislativo que padeceu de inúmeros equívocos, desde logo
quando, na fase inicial, se apelidou de entorse ao sistema de ordenamento do
território. Com efeito, esta alteração pretendia tornar mais expedita a
possibilidade de os municípios aumentarem o solo destinado a crescimento urbano,
que foi bastante condicionada a partir da Lei de Bases de 2014, embora sempre
admitida, através da aprovação de um Plano de Pormenor que fizesse a
reclassificação de solo rústico em solo urbano.
Diversas
razões externas levaram a que tenhamos hoje uma grave crise habitacional, que
afeta grande parte da sociedade, mas também algumas internas, como precisamente
esta legislação urbanística, que induziu a uma queda abrupta do volume de
construção e consequente escassez de oferta de nova habitação a custos
acessíveis. Ora, o “simplex” urbanístico, promovido pelo anterior governo
socialista, foi apenas uma tímida resposta a este problema e, igualmente
equivocado, ainda assim precipitou a crise política de 2024, o que é revelador
da importância do território para a economia.
O
segundo equívoco é a nossa tradicional desconfiança entre os setores público e
privado, em particular no domínio da aplicação legislativa. As Câmaras
Municipais, que muito bem detêm as principais competências nesta área, atuam no
pressuposto de que só devem autorizar o que está previsto na lei, enquanto ao
inverso, os designados particulares, com mais liberdade, consideram que podem ver
aprovado o que não se explicite como sendo ilegal. Ora, no planeamento e no projeto,
a margem de negociação entre a primeira e a segunda posições é enorme, que
devemos assumir como característica própria do ordenamento do território,
porque não podemos negar a evidência de que integram a criatividade inerente ao
desenho de soluções específicas em cada lugar, nas escalas urbanas e
arquitetónicas.
E
o terceiro equívoco, talvez mais surpreendente, foi a inclusão de uma
parametrização de preços, logo no corpo principal da alteração ao diploma. O
uso da estatística oficial da mediana de preços de venda, sem a lógica de uma
escala regional intermédia, rapidamente se demonstrou como frágil racional,
quando o mais prudente seria desenvolver essa proposta através de uma portaria
ou um decreto regulamentar consequente. Por último, a contestação pública que
sofreu o diploma salientou preconceitos teóricos e a falta de literacia
económica nas práticas de ordenamento do território, como se a limitação imposta
à expansão urbana, pela aplicação do RJIGT e dos regimes de reserva do solo não
fosse, também, uma das causas do aumento dos preços da habitação.
É
natural e adequada a proteção ambiental e ecológica de terrenos que, pelas suas
características intrínsecas, não se podem urbanizar, mas os efeitos económicos
das condicionantes terão de ser ponderados. Dado que o setor público não conseguirá
resolver a crise de habitação sem o racional económico dos promotores, dos
proprietários, das empresas de construção e da sociedade civil, o próximo
governo deverá então considerar as seguintes linhas de atuação:
1. 1. Iniciar
uma profunda revisão da legislação de ordenamento do território e a elaboração
de códigos da construção e do urbanismo, com base na linguagem profissional da
arquitetura e da engenharia, conhecedoras da arte e técnica do projeto e
planeamento, evitando a burocracia administrativa da ciência jurídica;
2. 2. Reduzir
a fiscalidade sobre a construção e o imobiliário e alterar também os
regulamentos sobre o arrendamento acessível e a habitação pública ou de custos
controlados, para viabilizar o propósito da revisão do RJIGT, convocando o
setor privado no aumento da oferta e na diminuição do preço da habitação;
3. 3. Concretizar
a simplificação do licenciamento urbanístico em parceria com as autarquias,
exigindo a mudança de paradigma nas práticas de controlo prévio e dotando as
associações profissionais de mais competências, em linha com a responsabilidade
dos projetistas no cumprimento das normas técnicas aplicáveis.
* Artigo do autor, publicado on-line no jornal Público: www.publico.pt/2025/05/16/opiniao/opiniao/equivocos-processo-lei-solos-2133285. Ilustração: extrato da proposta de Planta de Zonamento do Plano de Urbanização do Campus Universitário (Sintra). Arqt.os Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita (1997).
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