sexta-feira, 15 de agosto de 2025

137 - "Coroa Norte de Lisboa": alguns indicadores

 


Algumas das recentes políticas territoriais das áreas metropolitanas do país têm vindo a refletir sobre a possível descentralização do turismo em Lisboa e no Porto, visando melhor gerir a pressão urbanística nos diferentes bairros das cidades. Naturalmente, para que tal seja viável, devemos salientar o interesse patrimonial e cultural também presente fora dos centros urbanos mais turísticos. As zonas históricas da Coroa Norte de Lisboa, no Paço do Lumiar, em Carnide, e na Ameixoeira, apresentam essa potencialidade – eram os núcleos dispersos da antiga Direção Municipal de Reabilitação Urbana. Estes três bairros integram arquitetura e espaço público tradicional, que devemos continuar a preservar, mantendo a sua identidade e carácter.

Considerando as fases iniciais do planeamento, de informação e debate, para elaboração de um programa, torna-se indispensável a análise de indicadores, que é o objetivo destas linhas. Alguns dados básicos de população residente e evolução dos preços da habitação permitem uma primeira leitura, que embora insuficiente nos oferece uma situação relativa e de valores absolutos. As três freguesias objeto de estudo (Carnide, Lumiar e Santa Clara) representam cerca de 88 mil habitantes, aproximadamente 16 % da população da capital, segundo os censos de 2021. Mas a sua superfície territorial, de 13,6 km2, é precisamente um pouco menor, não chegando a 14 % do município.

Estas freguesias, apesar de periféricas, apresentam assim densidades relativamente altas, de 49 habitantes por hectare em Carnide, a 70 e 71, respetivamente no Lumiar e em Santa Clara. E são também as freguesias com menor percentagem de casas vazias de Lisboa, a par de Marvila (9 % do total de habitações): também segundo os últimos censos, eram 455 em Santa Clara, 534 em Carnide e 1.143 no Lumiar. Em termos de evolução do número de residentes, notam-se algumas diferenças: Carnide perdeu cerca de 1.200 habitantes entre 2011 e 2021, enquanto Lumiar e Santa Clara somaram mais 730 e 1.165, respetivamente. Face à média concelhia no mesmo período, de menos 1,2 % ao longo da década, Carnide fica assim abaixo desse valor, ao contrário do Lumiar e especialmente de Santa Clara, que cresceu mais de 5 % em população.


Freguesia

2023 (€/m2)

2024 (€/m2)

Diferença (€)

 Evolução (%)

Carnide

4.310

4.197

- 113

- 3

Lumiar

3.632

3.885

253

7

Santa Clara

2.783

3.416

633

23

Beato

3.096

3.982

886

29

Preço médio de venda de habitação no 4º trimestre de 2023 e 2024, sua diferença e evolução (INE).


Quanto aos preços de venda em habitação, no quadro das estatísticas periódicas oficiais, a tabela apresenta a diferença entre os últimos trimestres de 2023 e 2024, onde se regista um crescimento médio de 5 % no concelho de Lisboa. Para além das freguesias objeto de estudo, junta-se na última linha a do Beato, que teve o maior crescimento relativo do valor por m2, neste período. Destaca-se nesse sentido Santa Clara, que recebeu vários edifícios novos, com um aumento percentual próximo e significativo, de 633 € por m2. Por seu lado, os preços em Carnide estabilizaram, sendo bastante superiores em valor absoluto, de mais de 4.000 € por m2, contudo longe do máximo no final de 2024, correspondente à freguesia de Santo António, no centro, de quase 6.000 €.

Estes dados complementam a análise urbanística, morfológica e geográfica desta área da Corona Norte de Lisboa, tal como o olhar sobre a sua envolvente, no interior do concelho, em especial a expectativa criada com a futura utilização do enorme espaço aeroportuário. Mas também a observação para o lado de fora, dos 3 concelhos limítrofes desta periferia, onde se encontram freguesias de ainda maior densidade, em particular Encosta do Sol, na Amadora, e Póvoa de Santo Adrião e Olival, em Odivelas. O exercício de planeamento será assim mais consciente sobre os objetivos propostos, a par de condicionantes ambientais, culturais, paisagísticas e de mobilidade. Só desse modo poderemos concretizar uma área urbana com identidade e elevada qualidade económica e social, possivelmente através de uma unidade operativa de gestão territorial.


136 - Os equívocos do processo da "Lei dos Solos" *

 

O debate público iniciado no final de 2024 em torno da erradamente designada Lei dos Solos, que inclusive contribuiu politicamente para precipitar a dissolução da Assembleia da República, é um exemplo de como frequentemente perdemos oportunidades para mudar as práticas da administração, neste caso do urbanismo e da gestão do território. Agora que a alteração ao diploma, corretamente chamado de Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (RJIGT), promulgado pelo Presidente da República após as votações do Parlamento nas últimas sessões da legislatura, está em vigor e estabilizado, é tempo de fazer um balanço e delinear opções para o próximo governo.

Trata-se de um processo legislativo que padeceu de inúmeros equívocos, desde logo quando, na fase inicial, se apelidou de entorse ao sistema de ordenamento do território. Com efeito, esta alteração pretendia tornar mais expedita a possibilidade de os municípios aumentarem o solo destinado a crescimento urbano, que foi bastante condicionada a partir da Lei de Bases de 2014, embora sempre admitida, através da aprovação de um Plano de Pormenor que fizesse a reclassificação de solo rústico em solo urbano.

Diversas razões externas levaram a que tenhamos hoje uma grave crise habitacional, que afeta grande parte da sociedade, mas também algumas internas, como precisamente esta legislação urbanística, que induziu a uma queda abrupta do volume de construção e consequente escassez de oferta de nova habitação a custos acessíveis. Ora, o “simplex” urbanístico, promovido pelo anterior governo socialista, foi apenas uma tímida resposta a este problema e, igualmente equivocado, ainda assim precipitou a crise política de 2024, o que é revelador da importância do território para a economia.

O segundo equívoco é a nossa tradicional desconfiança entre os setores público e privado, em particular no domínio da aplicação legislativa. As Câmaras Municipais, que muito bem detêm as principais competências nesta área, atuam no pressuposto de que só devem autorizar o que está previsto na lei, enquanto ao inverso, os designados particulares, com mais liberdade, consideram que podem ver aprovado o que não se explicite como sendo ilegal. Ora, no planeamento e no projeto, a margem de negociação entre a primeira e a segunda posições é enorme, que devemos assumir como característica própria do ordenamento do território, porque não podemos negar a evidência de que integram a criatividade inerente ao desenho de soluções específicas em cada lugar, nas escalas urbanas e arquitetónicas.

E o terceiro equívoco, talvez mais surpreendente, foi a inclusão de uma parametrização de preços, logo no corpo principal da alteração ao diploma. O uso da estatística oficial da mediana de preços de venda, sem a lógica de uma escala regional intermédia, rapidamente se demonstrou como frágil racional, quando o mais prudente seria desenvolver essa proposta através de uma portaria ou um decreto regulamentar consequente. Por último, a contestação pública que sofreu o diploma salientou preconceitos teóricos e a falta de literacia económica nas práticas de ordenamento do território, como se a limitação imposta à expansão urbana, pela aplicação do RJIGT e dos regimes de reserva do solo não fosse, também, uma das causas do aumento dos preços da habitação.

É natural e adequada a proteção ambiental e ecológica de terrenos que, pelas suas características intrínsecas, não se podem urbanizar, mas os efeitos económicos das condicionantes terão de ser ponderados. Dado que o setor público não conseguirá resolver a crise de habitação sem o racional económico dos promotores, dos proprietários, das empresas de construção e da sociedade civil, o próximo governo deverá então considerar as seguintes linhas de atuação:

1.   1. Iniciar uma profunda revisão da legislação de ordenamento do território e a elaboração de códigos da construção e do urbanismo, com base na linguagem profissional da arquitetura e da engenharia, conhecedoras da arte e técnica do projeto e planeamento, evitando a burocracia administrativa da ciência jurídica;

2.   2. Reduzir a fiscalidade sobre a construção e o imobiliário e alterar também os regulamentos sobre o arrendamento acessível e a habitação pública ou de custos controlados, para viabilizar o propósito da revisão do RJIGT, convocando o setor privado no aumento da oferta e na diminuição do preço da habitação;

3.   3. Concretizar a simplificação do licenciamento urbanístico em parceria com as autarquias, exigindo a mudança de paradigma nas práticas de controlo prévio e dotando as associações profissionais de mais competências, em linha com a responsabilidade dos projetistas no cumprimento das normas técnicas aplicáveis.


        * Artigo de opinião publicado on-line no jornal Público: www.publico.pt/2025/05/16/opiniao/opiniao/equivocos-processo-lei-solos-2133285. Imagem: extrato da proposta de Planta de Zonamento do Plano de Urbanização do Campus Universitário (Sintra). Arqtos. Gonçalo Byrne e António Reis Cabrita (1997).