sábado, 17 de agosto de 2019

107 - A regra e o modelo

Lembrei-me do título da obra de Françoise Choay, de quem li uma parte da "Alegoria do Património", para falar de torres e urbanismo. Um tema muito debatido nos últimos meses, a propósito da possível aprovação de uma torre na Avenida Almirante Reis em Lisboa, no quarteirão da Portugália, e da demolição do prédio Coutinho em Viana do Castelo.
São duas áreas urbanas consolidadas, onde as normas urbanísticas dos Instrumentos de Gestão Territorial municipais (Planos Directores, de Urbanização e de Pormenor) não costumam ter dúvidas: apresentam regras como os alinhamentos pelos edifícios contíguos na rua e no tardoz e a referência às cérceas entre cruzamentos, entre outros parâmetros de continuidade. São espaços centrais em que o ordenamento dá especial atenção à morfologia da cidade (nunca percebi, aliás, o mito de que o planeamento não ligava à forma urbana). Se há receita utilizada no urbanismo, pelo menos desde meados dos anos 80, é a de procurar a continuidade das tipologias dominantes em cada lugar: centros históricos, quarteirão fechado ou aberto, baixas densidades, etc. Por certo às vezes ocorreram coisas estranhas, mas não pela regra das boas práticas de planeamento. Contudo, nem sempre foi assim.
Todos concordamos que por vezes é precisamente a quebra da norma que permite um efeito estético inesperado na cidade, oferecendo mais carácter à sua imagem, na linha ilustrada dos clássicos Lynch, Cullen ou Krier. Também essa flexibilidade se tem procurado verter nos regulamentos, ao delimitar os artigos de excepção, como para as esquinas, por exemplo no PDM de Lisboa. E há rupturas felizes, que quebram a monotonia dos traçados e das tipologias. Acontece neste caso das Avenidas Novas, entre outros, que passei num breve trabalho sobre o ordenamento ortorreticular, em homenagem ao mestre de tantos urbanistas, Fernando de Terán.


Em parte levantado sobre pilotis, o edifício de modelo modernista abre mais espaço público, permitindo a leitura da igreja de Pardal Monteiro e criando a oportunidade de um pequeno jardim, tão interessante entre os quarteirões fechados ao longo destas Avenidas. A densidade equilibrada e a diversidade de usos nos rés-do-chão, indicada nesta figura, são outras duas características que oferecem reconhecida qualidade a toda esta área da cidade.
Embora não se trate de uma torre, a sua inserção mostra-nos um exemplo de bom senso, quando a tipologia dissonante se integra na morfologia urbana presente. Admitindo-se que no caso da Portugália se pretendia construir em altura, não se compreende no entanto que se queira edificar igualmente, em simultâneo, as volumetrias alinhadas pelas alturas existentes, que fecham o resto do quarteirão, porque o sítio já é altamente densificado.
Ora, como se percebe, eliminava-se assim parte da área de construção a que o promotor teria "direito", eventualmente decorrente do recurso preverso ao Pedido de Informação Prévia, que urge clarificar na próxima revisão do Regime Jurídico da Urbanização e da Edificação. Mas a estabilidade jurídica e económica garantida pelo urbanismo não pode anular a nossa capacidade técnica para tomar as melhores decisões em cada momento, defendendo a qualidade urbana da cidade. Porque se dão então créditos de edificação neste contexto? Impermeabiliza-se totalmente o solo e depois dá-se créditos pelo aproveitamento das águas pluviais nos edifícios? Está visto que estes critérios são tecnicamente negativos e contraproducentes para o que deveriam servir.
O caso do Coutinho é diferente, já se foi longe demais ao manter-se em actividade uma entidade pública que apenas tem por missão demolir o edifício. E poderá agora ser um exemplo pioneiro de desconstrução, a partir da proposta da plataforma Construção Sustentável e de uma empresa de Braga tecnicamente competente. Restam já poucos dos seus moradores, mas poderia ainda considerar-se a hipótese de um concurso para a reabilitação do edifício, bem como os direitos de autor dos projectos para o novo mercado. Em bons exemplos recentes, a renovação de grandes edifícios de habitação colectiva obsoletos é uma prática premiada internacionalmente. O património construído do séc. XX requer também intervenção urgente.